Licenciou-se em Psicologia com alta classificação e hoje, para além de proprietária duma creche que dirige, dedica-se à música e acompanha ao órgão o Coro Paroquial na missa de domingo.
Já há muito que passou dos trinta mas continua com a candura dos seus tenros anos de escola. De voz meiga, tímida e ingénua, os seus olhitos redondos agitavam-se cheios de medos, incertezas, interrogações.
- Que tens hoje, menina, que pareces tão cansada?
- Foi um sonho mau, senhora professora.
- Com monstros?
- Não, com o inferno, a minha avó velha disse que se eu fosse má ia para o inferno arder numa grande fogueira.
- O inferno é uma história de monstros.
- Mas ela disse que era verdade, senhora professora, ela disse que era verdade!
- A tua avó está muito velhinha, por vezes pode enganar-se, não acreditas em mim?
- Acredito, senhora professora, tu até tens um dedo que adivinha…
- É verdade, e ele agora está a dizer-me que o teu pai vem amanhã falar comigo.
- Sério?!
– Sim, hás-de perguntar à tua mãe, mas agora acaba o teu desenho que está a ficar muito lindo.
Da secretária observava-os, aos vinte e dois que me tinham acompanhado nos últimos quatro anos. Tantas letras, números, palavras rasuradas, risos e raivas, desânimos e esperanças desalinhados. Tentativas de reconstrução dia a dia renovadas.
Ela continuava tímida, desajeitada nos modos mas lia e escrevia como nenhum. O seu vocabulário era rico tanto na prosa como nos tímidos poemas. Sensível mas exigente, perfeccionista e talvez por isso muito insegura:
- Desculpe incomodar, senhora professora, eu sei que sou uma chata mas preciso de tirar uma dúvida…
Em dia de aniversário presentearam-me com um enorme embrulho que abri emocionada. Um grande caixote de cartão que, apesar de leve, continha imensas caixinhas todas elas com fitinhas coloridas. As mentoras da ideia estavam excitadíssimas:
- Vá, professora, tem de encontrar a sua prenda.
– É só uma? Pensei que cada caixa continha um presente.
– Vá desembrulhando que há-de encontrar uma.
– Humm… então… deixem-me concentrar… só um segundo… vou abrir… esta!!
– Oh!!... Não!!... Assim não tem graça nenhuma. Acertou logo na primeira!
E logo aquela vozinha doce e ingénua:
- A professora sempre nos disse que tinha um dedo que adivinhava. É bem verdade!...
Hoje, olho demoradamente a mão que o possui, o tal dedo. Talvez na palma as linhas digam algo que não sei mas o dedo só mostra uma pele mais velha e enrugada. Nenhum sinal de adivinhação.
Clementina Antunes/09
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