sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

LEITURAS

foto-clemantunes


SENDO AS COISAS O QUE SÃO


Sendo as coisas o que são, continuamos, apesar de tudo, a suspirar para que sejam de outra maneira.

Como se percebe, isto aplica-se a tudo. Temos os empregos, os ordenados, os estilos de vida, a família, os amigos, os sonhos que nos são possíveis ou que nos calharam em sorte. Mesmo que não estejamos demasiado insatisfeitos, mesmo que reconheçamos que nem tudo é mau, mesmo que não nos mobilizemos para grandes feitos, grandes mudanças, grandes buscas, de vez em quando suspiramos fundo, puxamos uns ais e acalentamos, ainda que silenciosa, a esperança de que tudo possa ser melhor.

Muito melhor, porque já agora não há razão para sermos modestos nos nossos pedidos mudos.

Sendo as coisas o que são, ainda assim sabemos que umas são mais aceitáveis que outras, que umas resultam mais simpáticas, mais eficazes, mais lógicas, enfim, que umas são mais que outras.

Sendo as coisas o que são, e sabendo nós que a adultícia parece ser exactamente o estado de maturidade que nos permite aceitar isto mesmo sem grande revolta nem enorme zanga e, a partir daí, arranjar estratégias de gestão de uma realidade que parece produzir-se de forma autónoma, às vezes temos razões para ter saudáveis dúvidas.

Às vezes, a propósito e também a despropósito, interrogamo-nos se o conformismo necessário ao nosso conforto não tem tantas zonas de desconforto que liquida a relação custo-benefício.

Às vezes, olhando à volta o que está perto, e também o que está longe, apetece-nos mandar às urtigas a sensatez, o deve ser, uma espécie de ordem natural das coisas que corre com os dias, e partir à aventura, à descoberta de como é que as coisas, muitas coisas, seriam se não fossem como são.

A maioria de nós fica pelo caminho, porque se distrai, porque se ocupa com estímulos directos que precisam de respostas imediatas. Alguns desistem pela consciência da enormidade da tarefa ou por não vislumbrarem a ponta por onde se pegar.

Felizmente, para todos nós, que há sempre alguns que, por boas ou más razões, nunca crescem o suficiente para saberem lidar com o que acontece por perto.

São eles que apontam o futuro e servem de vanguardas à nossa temerosa descrença e à nossa incipiente esperança.



Isabel Leal
Prof. de Psicologia/Psicoterapeuta
(in Caras Psicologia)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

INTERROGAÇÃO


foto-Caixa Negra/Francisco Mendes

o que fazem as mães?
abrem caminho

mas abrem caminho
cegamente
não conhecem o túnel
o destino
a sombra que as enreda
mais à frente


Y. K. Centeno

domingo, 24 de janeiro de 2010

PEDAÇOS

foto-clemantunes


MINHA MÃE ERA REDONDA

Minha mãe era redonda. Redonda como um abraço. De baixa estatura, rosto de contornos arredondados emoldurado por cabelo preso em carrapito redondo. Alguma massa adiposa, partos sucessivos e grandes seios redondos, anularam a cintura que outrora fora bem delineada.

Logo que casada, minha mãe, criada com alguns “mimos”, viu depressa frustradas as suas esperanças de uma vida tranquila pois num espaço de treze anos daria à luz sete robustas crianças; e nos percalços duma pré-menopausa, meio envergonhada, ainda amamentou mais uma menina que era o ai Jesus de toda a família.

Como qualquer mãe de qualquer tempo, a minha almejava um futuro risonho para os seus filhos, se possível diferente do seu. Enquanto meu pai trabalhava fora minha mãe empenhava-se para que todos os terrenos pertencentes à família fossem devidamente cultivados de modo a proporcionarem alimento saudável e generoso.

Brincávamos imenso, eu e os meus irmãos, apesar de depois da escola, feitos os trabalhos de casa, e em férias todos termos algumas tarefas a desempenhar. Uns pegavam no cesto com a merenda e iam entregá-lo aos assalariados, outros descascavam as batatas para a sopa; um dava à manivela da bomba de água, outra migava as couves para fazer a comida dos animais que cresciam nos currais e outro acendia o fogão a lenha e acrescentava a água no reservatório; uma ia à venda comprar petróleo para colocar no motor de rega, outros espreitavam a água regando os regos do feijoal que crescia para o alto enrolado às canas…

Nos currais criavam-se dois ou três porcos e soltos pelo amplo pátio circulavam em liberdade uma cabra, três ovelhas e seus borregos, imensas galinhas de penas castanhas e pescoço pelado “vigiadas” por um orgulhoso galo e uma infinidade de coelhos de pelo cinzento que minavam o solo por debaixo da casa velha. Quando menos se esperava apareciam, saindo de um qualquer buraco, uns olhitos brilhantes de láparo saltitante querendo investigar o mundo cá de fora.

Eu sofria imenso com as alergias que A TERRA desencadeava em meu corpo mas mesmo assim não desistia de, com fardos de palha trazidos do Alentejo, colaborar na construção de gigantescos castelos com enormes escadarias, pontes levadiças e túneis intermináveis: deslumbrantes cidades imaginárias que povoávamos de reis, rainhas, princesas e cavaleiros andantes… Ali ficávamos largas horas vivendo um sonho que eu não queria ver terminar. Mas o tempo progredia inexorável…

Tinha já nove anos e frequentava a quarta classe na pequena escola que distava escassos metros da nossa casa quando minha mãe me chamou e, em tom solene, me disse: Está na hora de pedires à tua professora para te preparar para o exame de admissão. Vais estudar para Leiria como a tua irmã. E logo eu com prontidão: Não, não vou! E continuei a fazer os trabalhos de casa, como se o que tinha dito fosse ponto assente, enquanto minha mãe, olhos verdes perscrutadores, me olhava silenciosamente.

E no dia seguinte, dia quente à tardinha, pego no cesto do feijão seco e obedeço. No cerrado a terra já está preparada. Sigo as instruções, inclino-me sobre os sulcos e um a um, a distância certa, coloco os grãos de feijão vermelho que ao germinarem irão subir pelas canas e produzir as vagens que eu tanto detesto apanhar pelas alergias que me provocam. Concluída a tarefa, queixo-me do incómodo que tal posição me provocou. Minha mãe olha-me bem de frente e observa: É esta a vida que te espera se não quiseres continuar os estudos. É isto que queres?

Nos meus castelos de palha não há mais princesas nem cavaleiros andantes. Eu, continuo com as minhas alergias mas um pouco mais refinadas como seria de esperar de alguém que estudou o francês e leu versos de Camões… mas que ainda detesta apanhar feijão verde que trepa pelas canas em direcção ao céu…



Clementina Antunes/Agosto 2009

sábado, 23 de janeiro de 2010

PRECE



foto-You found me/Dani




Dai-me, Senhor,
cada dia a palavra,
a semente de fogo necessária
à lavoura. Dai-me ainda
a graça de uma vida devastada
de amor.
Mas livrai-me do medo
de ver a prece atendida.


Flor Campino

ReCANTOS POÉTICOS


Foto: Light Painting/ Pedro Maia


O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sobre os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede,
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge (1939-1989)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

TRIÁLOGO



Foto - Júlio Quintela


- Meninos, vamos tomar o pequeno almoço!
- Eh!... eh!... eh!...
- Ih!... ih!... ih!...
- Mas que risada é essa? Venham daí!
- Eh!... eh!... eh!...
- Ih!... ih!... ih!...
- Também me quero rir. O que se passa?
- Nada!... eh!... eh!... eh!...
- Nada!... ih!... ih!... ih!...
- Não querem dizer?!...
- Diz tu, António...
- Diz tu, Francisco...
- Eu, não! Diz tu!...
- É que... nós estávamos a falar de sexo...
- Ah... de sexo... Pois... tu és do sexo masculino e a mamã é...
- Não é nada disso, papá! É que o Manel, do segundo ano, disse que queria SEXAR com a Maria da minha sala... ih!... ih!... ih!...
- Eh!... eh!... eh!...
- Rápidos para a mesa que já estamos atrasados!!!

Clementina Antunes/10



terça-feira, 5 de janeiro de 2010

FORMIGAS...


foto "Formiga"-Luís Ferreira



São pretas, pequeninas e silenciosas mas desde que um dia atravessaram o terraço e eu não tive coragem para as exterminar radicalmente, nunca mais me deixaram. Um dia, aparecem pé ante pé atravessando a sala. Noutro, espreitam o lava-louça e querem saber o que tenho para o almoço. Já invadiram o esconderijo preferido do António, a despensa, mas hoje quiseram saber a marca do meu perfume e  vejam só, conhecer o que guardo nas gavetas do armário. Ah! Aí não!...
Sem dó nem piedade, peguei no insecticida. Desta vez é que vou ficar em paz...


Clementina Antunes/10


segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O REAL E O IDEAL


Leiria
foto-clemantunes (idealizada com ajuda de Picasa)


O REAL E O IDEAL


Se a distância entre aquilo que de facto existe e acontece e aquilo que achamos que devia ser e acontecer é sempre enorme, há épocas do ano em que o confronto mais intenso com estereótipos muito perfeitos e acabadinhos agudiza a sensação. Como agora.


Porque tudo nos fala de claridade, da harmonia, da amizade e da alegria de estarmos juntos e partilharmos, tendemos a reparar mais nas zonas de escuridão, de conflito, de zanga, de tristeza, de solidão e de abandono que também temos. Tendemos a valorizar o que existe (ou não existe e achamos que devia) que nos afasta dos modelos idealizados. Por qualquer razão, queríamos que a nossa fonte de bem-estar, um bem-estar permanente e duradouro, assentasse de pedra e cal na realidade, em acontecimentos e pessoas exteriores e independentes de nós que, no entanto, cumprissem com exactidão o papel que gostaríamos que desempenhassem.


Por qualquer razão, quase acreditamos que o importante se passa fora, ainda que perto de nós, e que os nossos recursos para lidar com o real são sempre insuficientes.


E, no entanto, trazemos de fabrico uma gama sofisticadíssima de possibilidades. Podemos não só gerir o que acontece à nossa volta, a tal da realidade, como transformá-la em direcção àquilo que nos faz mais sentido ou gostamos mais. Podemos até mudar-nos, aprendendo a olhar sob novas perspectivas e diferentes ângulos.


Claro que já sabemos que, mesmo com diferentes alternativas para fazer com que a realidade seja mais tolerável ou simpática, não conseguimos nunca que aquilo que idealizamos ganhe corpo e se estabeleça. Ainda que consigamos, de vez em quando, experimentar alguma sensação de plenitude, depois ela desfaz-se e desvanece-se.


Parece que é mesmo assim.


Parece que a possibilidade que temos de imaginar o que seria o ideal serve, sobretudo, para nos fazer mover. Para nos pôr a perseguir o sonho, a correr atrás do inalcançável e a ter ganas de manipular a realidade como se fosse o nosso estimado ursinho de peluche.


Os que não percebem isto ficam tristes e sentados a um canto.


O que, em certas alturas, é ainda mais triste.




Isabel Leal
Professora de Psicologia/Psicoterapeuta

sábado, 2 de janeiro de 2010

PALMAS... PARA JORGE





...
É a dança mais pungente
mão atrás e outra à frente
valsa de um homem carente...

...mão atrás e outra à frente...
...valsa de um homem carente...
...


L'APRÈS MIDI





Vale a pena re... re... re... re...VER!

Ou fechar os olhos e simplesmente ouvir a dança do piano...
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