quarta-feira, 20 de outubro de 2010

JOVENS ESCRITORES




-É chegada a minha hora,


balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas, tratava-se da mulher mais desinteressada pela vida que a vida alguma vez recebera, aquela que entre todas este mundo menos amara, aquela que mais desprezara o corpo e os seus prazeres [...] 

[...] também era uma estudiosa incomparável da morte, de todas as formas da morte, porque queria saber bem como morrer para poder alcançar a vida eterna, o que lhe dera conhecimentos inéditos e lhe permitira decifrar todas as etapas por que passam todos os mortos, e dizia que as fases da moribunda são seis, a Dúvida, o Desespero, o Apego, a Impaciência, que é o momento da cólera, o Orgulho e o Abandono [...]

[...] tudo sacrificara para um dia morrer bem, de tal modo que, quando ela emitiu a custo a frase É chegada a minha hora, as netas que com ela estavam interpretaram aquilo como sendo finalmente a renúncia da vida e a aceitação da morte, e, na verdade, era o que ela queria dizer, [...]

- Valha-nos Deus, chamem o médico, chamem o médico,

gritaram as netas agarradas à cadeira onde vinham passando o tempo, revezando-se havia três meses, pois a velha nunca quisera estar só e arranjou aquele assento de cabeceira que, [...]

- Não chamam nada, na minha morte mando eu,

Claro está que a velha não podia dizer «Na minha vida mando eu», porém, com aquele trocadilho, estava a fazer uma clara alusão à vida que ela não vivera e por que sempre tivera curiosidades, sempre desejara experimentar, mesmo escondida atrás das rezas e dos terços, [...]

- Não quero médico, chamem-me um fotógrafo,

E as netas, ainda confusas com aquele estado impenitente, exclamaram,

- Estás doida, Vó?,

E a avó retrucou na mesma moeda,

- Estou a morrer, não estou?, então, cumpra-se a minha vontade, quero um fotógrafo, pois o médico adia a morte e o fotógrafo perpetua a vida, [...]


Mário Lúcio Sousa in O Novíssimo Testamento

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