domingo, 24 de outubro de 2010

JOVENS ESCRITORES - II

Sabaudia-Itália



  [...]«Ainda não me explicaste essa história do Bom Inverno. Estamos em Junho, porra.»
   Ele encolheu os ombros e voltou a pegar no cigarro.
   «Sei lá. Há anos que ouço o meu pai usar essa expressão. Presumo que só o Metzger saiba a resposta.»
   «Bom, se um dia descobrires porquê, faz o favor de me elucidares.»
   Tirei o guardanapo do colo, procurei o cabo da bengala debaixo da mesa e bocejei. O restaurante estava completamente vazio, e um último e solitário empregado limpava o balcão do bar com um pano molhado. «Estou a adorar a conversa, mas amanhã temos um longo dia. Vamos andando?»
   Vincenzo pareceu não me ouvir.
   «Ouve lá, estou a ter uma ideia bestial.»
   Pousei o guardanapo usado sobre a mesa.
   «As famosas últimas palavras antes de um desastre iminente.»
   «Se o telefonema chegar, podias vir connosco a Sabaudia.»
   Fitei-o, incrédulo.
   «Não quero parecer mal-educado, mas acabámos de nos conhecer.»
   Os olhos de Vincenzo brilhavam de entusiasmo.
   «A sério, imagina bem as possibilidades. Somos os dois escritores, somos os dois jovens. Passar uns dias na casa de Metzger pode ser uma experiência do caraças. Que tem a vantagem de poder acontecer precisamente agora.»
   «Escuta», disse, interrompendo-o bruscamente. «É a primeira vez que estou a ouvir falar dessa história toda. Do Metzger, de Sabaudia, do Bom Inverno, seja lá o que for que isso queira dizer. [...]


João Tordo in O Bom Inverno



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

JOVENS ESCRITORES




-É chegada a minha hora,


balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas, tratava-se da mulher mais desinteressada pela vida que a vida alguma vez recebera, aquela que entre todas este mundo menos amara, aquela que mais desprezara o corpo e os seus prazeres [...] 

[...] também era uma estudiosa incomparável da morte, de todas as formas da morte, porque queria saber bem como morrer para poder alcançar a vida eterna, o que lhe dera conhecimentos inéditos e lhe permitira decifrar todas as etapas por que passam todos os mortos, e dizia que as fases da moribunda são seis, a Dúvida, o Desespero, o Apego, a Impaciência, que é o momento da cólera, o Orgulho e o Abandono [...]

[...] tudo sacrificara para um dia morrer bem, de tal modo que, quando ela emitiu a custo a frase É chegada a minha hora, as netas que com ela estavam interpretaram aquilo como sendo finalmente a renúncia da vida e a aceitação da morte, e, na verdade, era o que ela queria dizer, [...]

- Valha-nos Deus, chamem o médico, chamem o médico,

gritaram as netas agarradas à cadeira onde vinham passando o tempo, revezando-se havia três meses, pois a velha nunca quisera estar só e arranjou aquele assento de cabeceira que, [...]

- Não chamam nada, na minha morte mando eu,

Claro está que a velha não podia dizer «Na minha vida mando eu», porém, com aquele trocadilho, estava a fazer uma clara alusão à vida que ela não vivera e por que sempre tivera curiosidades, sempre desejara experimentar, mesmo escondida atrás das rezas e dos terços, [...]

- Não quero médico, chamem-me um fotógrafo,

E as netas, ainda confusas com aquele estado impenitente, exclamaram,

- Estás doida, Vó?,

E a avó retrucou na mesma moeda,

- Estou a morrer, não estou?, então, cumpra-se a minha vontade, quero um fotógrafo, pois o médico adia a morte e o fotógrafo perpetua a vida, [...]


Mário Lúcio Sousa in O Novíssimo Testamento

domingo, 10 de outubro de 2010

ATÉ ONDE, ATÉ QUANDO?






Entraste cambaleante pelo palco e o público tremeu receando que a cadeira te não soubesse acolher…
Escoraste-te nos amigos e nas palmas e mergulhaste no abraço da guitarra que te guiou…
Tropeçaste nas palavras mas ergueste-te seguro partilhando as tuas dores, os teus risos, os teus amores…
E os teus poemas nos levaram ao mais fundo de nós…
E as melodias que nos doaste transportaram-nos ao centro do belo, no mais alto ponto da criação…

Cambaleando contigo nos teus passos inseguros, titubeantes 

- encosta-te a mim, disse-te eu

vagueei por entre o que é torto… e o que é direito… certo e errado… o sim e o não…
                                 
                                  … procurei o equilíBRIO

… do dia e da noite… do faz e do faz-de-conta, do criador e do que mata…
… do riso e da lágrima…                  … da admiração e da pena…


E a ti rendida me perguntei:
Até onde, até quando, pode o anjo que te protege guiar-te por cordas e teclas, em acordes e ritmos certeiros, voando pela noite… do lado certo … da Arte?...



Clementina Antunes/9 Out-2010
(depois de ouvir Jorge Palma em concerto acústico)