domingo, 24 de janeiro de 2010

PEDAÇOS

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MINHA MÃE ERA REDONDA

Minha mãe era redonda. Redonda como um abraço. De baixa estatura, rosto de contornos arredondados emoldurado por cabelo preso em carrapito redondo. Alguma massa adiposa, partos sucessivos e grandes seios redondos, anularam a cintura que outrora fora bem delineada.

Logo que casada, minha mãe, criada com alguns “mimos”, viu depressa frustradas as suas esperanças de uma vida tranquila pois num espaço de treze anos daria à luz sete robustas crianças; e nos percalços duma pré-menopausa, meio envergonhada, ainda amamentou mais uma menina que era o ai Jesus de toda a família.

Como qualquer mãe de qualquer tempo, a minha almejava um futuro risonho para os seus filhos, se possível diferente do seu. Enquanto meu pai trabalhava fora minha mãe empenhava-se para que todos os terrenos pertencentes à família fossem devidamente cultivados de modo a proporcionarem alimento saudável e generoso.

Brincávamos imenso, eu e os meus irmãos, apesar de depois da escola, feitos os trabalhos de casa, e em férias todos termos algumas tarefas a desempenhar. Uns pegavam no cesto com a merenda e iam entregá-lo aos assalariados, outros descascavam as batatas para a sopa; um dava à manivela da bomba de água, outra migava as couves para fazer a comida dos animais que cresciam nos currais e outro acendia o fogão a lenha e acrescentava a água no reservatório; uma ia à venda comprar petróleo para colocar no motor de rega, outros espreitavam a água regando os regos do feijoal que crescia para o alto enrolado às canas…

Nos currais criavam-se dois ou três porcos e soltos pelo amplo pátio circulavam em liberdade uma cabra, três ovelhas e seus borregos, imensas galinhas de penas castanhas e pescoço pelado “vigiadas” por um orgulhoso galo e uma infinidade de coelhos de pelo cinzento que minavam o solo por debaixo da casa velha. Quando menos se esperava apareciam, saindo de um qualquer buraco, uns olhitos brilhantes de láparo saltitante querendo investigar o mundo cá de fora.

Eu sofria imenso com as alergias que A TERRA desencadeava em meu corpo mas mesmo assim não desistia de, com fardos de palha trazidos do Alentejo, colaborar na construção de gigantescos castelos com enormes escadarias, pontes levadiças e túneis intermináveis: deslumbrantes cidades imaginárias que povoávamos de reis, rainhas, princesas e cavaleiros andantes… Ali ficávamos largas horas vivendo um sonho que eu não queria ver terminar. Mas o tempo progredia inexorável…

Tinha já nove anos e frequentava a quarta classe na pequena escola que distava escassos metros da nossa casa quando minha mãe me chamou e, em tom solene, me disse: Está na hora de pedires à tua professora para te preparar para o exame de admissão. Vais estudar para Leiria como a tua irmã. E logo eu com prontidão: Não, não vou! E continuei a fazer os trabalhos de casa, como se o que tinha dito fosse ponto assente, enquanto minha mãe, olhos verdes perscrutadores, me olhava silenciosamente.

E no dia seguinte, dia quente à tardinha, pego no cesto do feijão seco e obedeço. No cerrado a terra já está preparada. Sigo as instruções, inclino-me sobre os sulcos e um a um, a distância certa, coloco os grãos de feijão vermelho que ao germinarem irão subir pelas canas e produzir as vagens que eu tanto detesto apanhar pelas alergias que me provocam. Concluída a tarefa, queixo-me do incómodo que tal posição me provocou. Minha mãe olha-me bem de frente e observa: É esta a vida que te espera se não quiseres continuar os estudos. É isto que queres?

Nos meus castelos de palha não há mais princesas nem cavaleiros andantes. Eu, continuo com as minhas alergias mas um pouco mais refinadas como seria de esperar de alguém que estudou o francês e leu versos de Camões… mas que ainda detesta apanhar feijão verde que trepa pelas canas em direcção ao céu…



Clementina Antunes/Agosto 2009

2 comentários:

  1. OLÁ,AMIGA!
    Acabei de ler o teu Belo texto e quero dizer - te que me arrepiei e comovi, com as tuas maravilhosas palavras com que nos contaste quase toda a tua vida de criança.

    Adorei... adorei!!!

    Mais um vez os meus parabéns.

    Um beijinho


    maria da cruz

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  2. Maravilha de autoretrato...Identifico-me em cenas semelhantes...
    Gostei Gosto e gostarei.

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