Na foto-Monsenhor Nunes Pereira no seu atelier
Tarde chuvosa de domingo outonal. Chegados junto à igreja, vestidos de preto/branco/vermelho, abrimos os guarda chuvas mas mesmo assim não conseguimos proteger por completo os instrumentos musicais que retirámos do autocarro. Atravessado o adro e já no salão paroquial preparámo-nos para intervir nas comemorações do aniversário do Centro Social.
Quando aceitámos o convite pensámos que seria uma actuação para idosos e familiares igual a tantas outras mas logo fomos surpreendidos pela grande jovialidade do padre que nos recebeu e que viria a revelar-se a alma daquela comunidade. De humor sadio e fácil comunicação, contagiou todos nós com a sua alegria e amor à obra que tem vindo a desenvolver. O seu entusiasmo estendeu-se ao palco e o seu sorriso alastrou pela sala. Ele cantou, bateu palmas, dançou e pediu bis. A música tradicional que interpretámos teve outro sabor.
Não consegui deixar de o comparar ao padre da minha aldeia quando, ainda eu era criança, ameaçava o povo do alto do púlpito com o inferno e os comunistas. Dali, em sexta feira santa, ele começava invariavelmente o sermão com: Ó vós que passais, olhai e vede se há dor igual à minha dor! Para mim esta frase estará sempre ligada ao padre da minha aldeia que acabou por ser expulso pelo povo e colocado pelo bispo em terras de comunistas ferrenhos. Lições que a vida ensina...
Não faltaram os habituais discursos de ocasião pelos habituais presidentes (do Centro Social, da Freguesia, da Câmara Municipal) seguidos de um lauto lanche. E aí o grupo foi novamente surpreendido pelo Sr.Prior. Depois de uma pequena ausência ele regressa com uma chaleira fumegante. Serve-nos delicadamente e insiste para que bebamos do seu chá que ele próprio confeccionou com receita que não divulga.
Quando sorvi o primeiro gole recordei aquele outro padre, numa outra noite já distante em terras castelhanas, oferecendo cálices de licor aos fatigados orfeonistas antes do último concerto da sua primeira digressão europeia. Ninguém do público que nos foi ouvir naquela lindíssima igreja notou o nosso cansaço...
Bem comidos, bem bebidos, é já tarde. Precisamos voltar mas não recusamos o convite para uma visita à residência paroquial, ali mesmo ao lado. Ao entrar as palavras ficam mudas durante alguns segundos para logo se soltarem em exclamações entusiastas perante a arte que se nos depara: centenas de representações de Santo António e presépios dispostos em vitrinas, móveis, paredes ou qualquer recanto, bem iluminados. Admirámos também os óleos, as aguarelas, os mistérios que ele próprio construiu, as esculturas...
Interrompendo o meu enlevo uma voz se destaca: Sr. Prior, posso ir à casa de banho? e logo outra se interroga: também haverá lá algum santo António? ao que o padre logo responde: lá dentro não, mas na porta por fora tenho duas gravuras de Nunes Pereira.Nunes Pereira?! Monsenhor Nunes Pereira? Na porta da casa de banho?!!! pergunto eu estupefacta. E logo ele: na porta, nos corredores e em muitas paredes. Olhe ali na sala.
E ao contemplar o grande número de gravuras eu voltei atrás uns quantos anos quando de autocarro um grupo de artistas plásticos se deslocou a Madrid para uma visita à ARCO. E sorri ao lembrar com ternura aquela voz meiga numa figura de homem pequeno; as suas anedotas malandras e o seu riso contido; a sua destreza no traço retratando os meus caracóis...
E o padre conta: com dificuldades de tesouraria Nunes Pereira, há muitos anos pároco duma outra freguesia, pagara ao jovem António, ainda indeciso quanto à sua vocação, pequenos trabalhos de carpintaria realizados na sua igreja com dezenas de gravuras de sua autoria que agora eu estava admirando.
Não fora o adiantado da hora e teríamos ficado de bom grado mais um pouco.Mas um dia hei-de voltar. Talvez ele me ofereça do seu santificado chá e me convide a subir ao primeiro andar da casa paroquial. Quem sabe até me abra a porta do seu quarto. É que estou com um desejo danado de descobrir as obras de arte que ele guarda na sua alcova...
Clementina Antunes/09